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Os rios ocultos de São Paulo


São Paulo surgiu, há pouco mais de quatrocentos anos, no alto de uma colina. A colina em forma de triângulo era um lugar considerado mágico, sagrado, para os índios Tupiniquins, do lado esquerdo dessa colina estava o Rio Anhangabaú, do lado direito o Rio Piratininga, esse último que mais tarde seria chamado de Tamanduateí.

Segundo a lenda Tupi, "Anhangá" (que deu nome ao Rio) era uma entidade mágica, um cervo de pelagem branca e olhos vermelhos, que surgia diante de caçadores que caçavam fora de época, fêmeas prenhas ou filhotes de animais. O olhar do Anhangá, segundo a lenda, era capaz de enlouquecer aqueles que o encaravam.

No rio Anhangabaú, hoje soterrado sob o vale homônimo, apenas o xamã, o pajé podia descer, lá, naquele local místico, onde, segundo a tradição Tupi, linhas energéticas se entrelaçam com cosmo, o líder espiritual da tribo se comunicava com os espíritos antigos. Era um rio sagrado...

Os índios, o Anhangá, os espíritos antigos, o rio, todos se foram.


Na cosmovisão dos povos antigos, cada Rio tinha uma história, um significado e até mesmo poderes místicos, poderiam, em alguns casos, servir como portais para outros mundos ou mesmo ter propriedades curativas ou de rejuvenescimento. Conforme os nativos perderam seu lugar para o homem branco, os significados e as lendas se perderam, e com eles, muitas vezes, os próprios rios.

Hoje o que resta é a podridão e a morte de vários cursos d'água ao redor do mundo.


Segundo o geógrafo Luiz de Campos Júnior, ninguém na cidade de São Paulo está a muito mais de 300 metros de um curso d’água. A quantidade de rios, riachos e afins, na capital paulista é gigantesca. Alguns locais da cidade mostram no próprio nome a ligação da metrópole com as águas, como o distrito do Tremembé (onde eu moro, inclusive, que significa “alagadiço” em Tupi, e a região da Cantareira cujo nome vem dos cântaros (recipientes nos quais os antigos armazenavam água das fontes da região).


A prefeitura de São Paulo tem mapeados, em seus registros, 280 cursos d’água. No entanto, estima-se que o número seja muito maior, entre 300 e 500. Sob as ruas e avenidas por toda a capital paulista, juntos, esses cursos somariam mais de 3000 quilômetros de extensão.

Ao longo da história humana as civilizações, além de utilizarem simplesmente os recursos hídricos, interagiram e alteraram o curso de rios por toda a parte. sumérios, egípcios, gregos, romanos, astecas, incas, todos realizaram obras e alterações no fluxo das águas em seus respectivos territórios para que a água servisse aos propósitos de suas sociedades. Nessas culturas, no entanto, os rios foram em geral manipulados para fornecer aquilo que nasceram para fazer: água, e a capacidade desses povos de destruir os ecossistemas eram consideravelmente menores.


Tá, mas e São Paulo?

Aqui em São Paulo as intervenções e modificações humanas nos rios acontecem desde o final do século XIX. Nessa época os habitantes da metrópole sul-americana já poluíam o Rio Tamanduateí, por exemplo, rio que nasce na Serra do mar e segue seu curso pela zona leste da cidade.


Em 1894 tiveram início as discussões para retificar o curso do Tamanduateí e canalizá-lo para que o esgoto de bairros próximos escoasse por ele.

Escoar esgoto... Isso mesmo! Você não leu errado. Enquanto lá na antiguidade o Egito foi chamado de “joia do Nilo”, devido às influência do rio na agricultura e, portanto, na prosperidade do reino dos faraós, aqui no Brasil, em São Paulo nos um dos mais importantes rios da cidade com a única e exclusiva finalidade de escoar fezes e dejetos fisiológicos.


A obra de retificação do Rio Tamanduateí seria concluída em 1916. Mas foi a partir dos anos 20 que os projetos de retificação, alteração de curso e retificação dos rios de São Paulo ganharam força. Em 1928 seria a vez do Rio Pinheiros. O Pinheiros, ao contrário do que é hoje, seguia seu rumo serpenteando, cheio de curvas. As margens, que justificavam o nome do rio e do bairro em torno dele, eram repletas de Pinheiros. Dez anos mais tarde, em 1938 o Rio Tietê entraria na mira dos governantes.


Rio Pinheiros

A deformação e destruição dos rios tem início numa época que coincide com a popularização do automóvel. Acho que você já entendeu, né? Sufocar os rios, a água, para dar espaço aos carros, ao barulho e à fumaça.

Apenas 5 a cada 100 paulistanos viram o Rio Pinheiros com curvas e árvores nas margens.


Ah, é claro que não para por aí...

A popularização dos automóveis e o comércio em torno dela levou a capital paulista a outro processo de alteração da paisagem e dos rios e riachos: o soterramento... Dezenas de rios ao longo da metrópole foram soterrados abrindo caminho para grandes avenidas…


Iniciativas, como Existe Água em SP, a Rios (In)visíveis e a Rios & Ruas fazem um trabalho de mapeamento dos cursos d’água na capital paulista. A Rios & Ruas mapeou 300 casos de soterramento de rios e realizou intervenções para indicar os locais precisos por onde esses rios, córregos e riachos originalmente passavam.



Córrego Água Espraiada — Avenida Jornalista Roberto Marinho


Córrego Pirajuçara — Avenida Eliseu de Almeida


Córrego da Traição — Avenida dos Bandeirantes


Ribeirão Verde — Avenida General Edgar Facó


Córrego do Iguatemi — Avenida Brigadeiro Faria Lima (foto)


Córrego do Sapateiro — Avenida 23 de Maio


Córrego da Mooca — Avenida Prof. Luiz Ignácio Anhaia Mello


Córrego do Tatuapé — Avenida Salim Farah Maluf



Os exemplos acima são apenas alguns dos inúmeros rios invisíveis da cidade.

O Vale do Anhangabaú, tradicional ponto turístico e de eventos, do centro velho de São Paulo, como já dito, tem esse nome devido ao Rio Anhangabaú, que nasce perto da Avenida Paulista.


Algumas das principais vias da capital estão sobre rios canalizados, mas há outras formas de invisibilizar as águas da cidade, o Córrego Pirarungáua permaneceu escondido por mais de 70 anos em uma galeria no interior do Jardim Botânico, no bairro do Ipiranga. O córrego corria por um canal subterrâneo, construído no início do século vinte. Em 2007, uma parede da galeria desmoronou revelando as o curso d'água, então, a administração decidiu revitalizar o córrego, que foi reaberto em 2008.


São Paulo de Piratininga, era dessa forma que a cidade era chamada quando os portugueses chegaram por aqui. “pira” em tupi-guarani significa “peixe” – o que demonstra a abundância de peixes e consequentemente de águas na região. Você consegue imaginar um peixe nativo da cidade hoje em dia? Eu te confesso que eu não… No máximo um daqueles peixes roxos fluorescentes, com 35 olhos, pseudópodes e tentáculos, sabe? Tipo ficção científica.


Vocês devem lembrar da crise hídrica, né? Horas e horas do seu dia sem água e muitas vezes dias inteiros. Isso, em muitos aspectos, foi uma das escolhas que a cidade fez ao longo das décadas. A escolha por concreto, automóveis e fumaça, trouxe consigo uma série de consequências... Desde as enchentes e alagamentos, até alterações no microclima da cidade e no regime de chuvas.


Segundo Pérola Brocaneli, da faculdade de arquitetura e urbanismo da USP, a despoluição de um rio e a revitalização da paisagem em torno dele colaboram para refrescar o clima e consequentemente atrair mais chuvas. A especialista pôde observar e vivenciar isso na cidade de Iracemápolis, que sofria com falta d’água e iniciou um projeto de recuperação da mata ciliar e conservação do solo, e hoje colhe os frutos dessa escolha.


Embora os rios não possam voltar ao seu design original, e os rios tornados subterrâneos na maioria dos casos também não possam retornar, a despoluição dos rios visíveis e a recuperação de parte da vegetação em torno deles é um processo amplamente viável, como já foi provado nos casos famosos dos rios Tâmisa, em Londres na Inglaterra; Cheonggyecheon, em Seul, na Coreia do Sul; Rio Sena, em Paris e o Tejo, em Lisboa.


Rio Sena

Paris é um dos destinos turísticos mais visitados do mundo e uma das maiores referências culturais do planeta, mas seu principal rio, o Sena, hoje com suas incríveis pontes e visual quase mágico, cenário de filmes e pinturas, por muito tempo assim. Degradado pela poluição industrial e pelo esgoto doméstico por décadas, em por volta de 1960 a sofrer uma drastica inrtervencao por parte dos franceses, que passaram a construir estações de tratamento de esgoto. E aplicar pesadas multas para fábricas e empresas que despejarem substâncias ilegais nas águas do Sena.


Na Terra de Shakespeare, do Black Sabbath e de Harry Potter, o rio Tâmisa é a principal visão a partir do prédio do Parlamento. As águas se estendem por 350km. O histórico de poluição remonta ao ano 1610, desde então sua água não é mais considerada potável. O próprio apelido do Tâmisa era o “O Grande Fedor”. Nos dias de hoje há estações para o tratamento do esgoto e um incinerador que gera energia para elas a partir dos sedimentos provenientes desse tratamento. Todos os dias dois barcos percorrem o rio para tirar cerca de 30 toneladas de lixo e preservar as águas.


Rio Tamisa

Os sul coreanos realizaram um feito espetacular, em apenas quatro anos. Isso mesmo! Quatro anos! Esse curto período foi tudo que a nação asiática precisou para revitalizar completamente o rio Cheonggyecheon, que com seus quase 6 km atravessa a capital sul coreana. A semente do projeto foi plantada em julho de 2003 com a implosão de um enorme viaduto que passava sobre o rio, além de melhorias ambientais como a construção de uma série de parques lineares. Nos dias de hoje se ver cascatas, fontes, peixes e várias crianças e jovens dando uma volta por lá.


Rio Cheonggyecheon

O rio Tejo nasce em além das fronteiras espanholas e deságua no Oceano Atlântico, formando um estuário em Lisboa, capital de Portugal.

800 milhões de euros, esse foi o tamanho do investimento para sua revitalização, que incluiu obras de saneamento e renovação da rede de condutas de distribuição de água e esgoto. Depois de um elaborado projeto de recuperação do rio símbolo de dos lusitanos, golfinhos e peixes nadam para lá e para cá.


Com tantos exemplos por aí, por que São Paulo, a principal e mais rica cidade da América Latina ainda não conseguiu resolver esse problema?

Ao contrário de Londres, Seul, Lisboa e Paris, São Paulo ainda não conseguiu recuperar seus dois principais rios, Tietê e Pinheiros.


Com 56 metros de uma margem a outra e 26 km de leito dentro dos limites da cidade de São Paulo, o Rio Tietê é o principal rio da cidade e uma marca constante da paisagem por vários pontos do município. Na maior parte do curso o odor do rio chega a dar náuseas, Algumas raras e valentes capivaras se aventuram pelas margens, mas elas são apenas um raro sinal de vida em meio ao lixo.


Entre as cidades de Itaquaquecetuba, além da divisa leste da cidade, e Cabreúva, a noroeste, a oxigenação é praticamente zero. Pra você ter uma ideia, o mínimo necessário para que um peixe viva nas águas de um rio é uma oxigenação de 5%, enquanto o ideal é ao menos 7%.


A tentativa do governo do estado de limpar o rio começou em 1992. À época, o governador Antônio Fleury Filho chegou a afirmar que beberia água do Tietê, o gabinete do governo prometeu, em 1993, que as águas estariam potáveis até 2005, o que sabemos, não aconteceu...


Quase três décadas se passaram e mais de 8 milhões de reais foram gastos, mas nada, de fato, mudou.

Muitos acreditam que a limpeza do rio se trata de remover a água suja ou simplesmente tratá-la, no entanto especialistas dão conta de que a questão real é interromper o despejo de esgotos, fazendo isso de forma eficaz o próprio passa a se livrar dos dejetos remanescentes.


O esgoto doméstico é o grande vilão do caso do Tietê, no início da década de 90 apenas 70% do esgoto da região metropolitana de São Paulo era recolhido e apenas 17%, de fato, tratado. Nos dias de hoje, 59% do esgoto é tratado e 87% é recolhido na grande São Paulo. Já na capital, 88% dos dejetos são recolhidos e por volta de 60% são tratados.

Embora a média de tratamento de esgoto em São Paulo seja muito superior à média do Brasil, 41% do esgoto ainda vai parar no Rio, dessa forma é inviável realizar a despoluição.


Em entrevista de 2017 à BBC Brasil, José Carlos Mierzwa, professor do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), disse que o mais complicado é construir uma rede apropriada de coleta de esgoto. Sobretudo nos bairros já consolidados, nos quais seria necessário passar tubulações por debaixo dos prédios.

"Em uma região metropolitana como São Paulo, com 22 milhões de habitantes, 41% do esgoto não recebe tratamento é um volume muito grande", afirma o professor.


A questão da poluição dos rios está totalmente ligada ao problema da habitação. Segundo os estudiosos, a questão da habitação precisa ser resolvida de forma simultânea às questões da construção de estações de tratamento de esgoto e da despoluição das águas já comprometidas.


Simplesmente remover as famílias das áreas de várzea e das imediações dos rios apenas faz com que o problema seja deixado para depois.

O crescimento desordenado e socialmente desigual das cidades causou um processo de expulsão das pessoas mais pobres das regiões centrais, dessa forma essa população acabou se instalando em regiões de mananciais nos extremos da cidade.

As questões de poluição dos rios, de enchentes e da habitação popular estão interligadas, de modo que não se pensar num projeto para a resolução desse problema a não ser que o projeto em questão envolva e conecte todos os fatores que contribuem com esse quadro.


O potencial econômico da despoluição dos rios é, a longo prazo, enorme. Você pode imaginar a capacidade de geração de receita que teria Rio Pinheiros (que tem grande parte do seu curso passando por uma região rica da cidade) se a área das margens pudesse ser usada para a instalação de bares e restaurantes, atividades esportivas profissionais, por exemplo? Ou as águas do Tietê e do Tamanduateí pudessem ser usadas para transporte de cargas e de pessoas? Além do próprio potencial turístico que a coisa toda traria, deixando, inclusive, muitas partes da cidade mais bonitas e agradáveis aos próprios cidadãos paulistanos e a turistas, o meio ambiente e o microclima da cidade seriam amplamente beneficiados.


Os exemplos de sucesso pelo mundo existem aos montes. Aos paulistanos, no entanto, resta esperar que um dia algum ou alguns desses fartos exemplos de êxito no resgate de rios pelo mundo possam se tornar reais por aqui.



Por André Walker, do Grupo Mostra de Ideias.

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